No centro do
anúncio da Igreja está o exemplo do Filho de Deus, que «sendo de condição
divina se tornou semelhante a nós». Este movimento de descida da divindade é
expressão do amor infinito de Deus que, sem deixar de ser Deus, tornou-se homem
para que o homem «recuperasse a semelhança perdida pelo pecado».
A estratégia divina
parece ser claramente da diluição da barreira entre o sagrado e o profano,
entre o mundo e o reino de Deus (pelo menos é-nos difícil estabelecer essa
fronteira), uma estratégia válida, já que o mundo, o barro de que nos fala S.
Paulo, é de um valor incomparavelmente inferior ao tesouro que ele transporta,
mas ainda assim indispensável para que o precioso conteúdo seja transportado.
O tesouro de Deus
é, portanto, formatado por esta matéria caduca, variável consoante a
circunstância histórica, mas não se torna refém dela. Dito de outro modo, no
mistério da encarnação a Palavra incriada tornou-se também uma forma, uma
figura, um rosto, uma expressão humana limitada no tempo - o tempo está em si
mesmo em inexorável decomposição, é necessário como o ritmo na música, como
estrutura organizadora de uma melodia -, mas não se tornou escravo dessa figura
nem desse rosto.
É corajosa a
releitura que Jesus faz da lei que obrigava a respeitar escrupulosamente o
descanso sabático (cf. Marcos 2, 23 - 3, 6). Lei, variação da matéria animada
por um espírito, datada de um tempo e um lugar que, fora de contexto, uma vez
absolutizada, torna-se arma de arremesso, e não estrutura potenciadora do
crescimento de um sujeito, individual ou coletivo.
É comum a tendência
para divinizar a lei ou a linguagem própria de um tempo. Como todos os grupos,
também na comunidade crente, por vezes, por detrás de um sorriso sereno,
mantém-se o debate aceso sobre certos temas, persiste a discussão sobre
questões morais, expressões litúrgicas, orientações disciplinares, entre
outras, que, convenhamos, foram desenhadas num contexto e continuam a
condicionar as novas formas de dizer a Boa Nova. A verdade é que esta linguagem
tornou-se um enigma para os homens de hoje. «Não se entende», dizem. «Estes
princípios não fazem sentido», confidenciam-me. «É impraticável esta
disciplina», repetem. Não, não podemos dizer que é a lei de Deus que está em
causa, mas uma expressão do espírito da lei que persiste muito para além do seu
prazo de validade. «A lei de Deus é a mesma», protestava zangada uma boa
senhora, só porque a missa tinha deixado de ser em latim. A lei de Deus?
O risco da
absolutização da lei é evidente: a catalogação entre os bons cristãos, os
aparentemente cumpridores, e os fracos, os de segunda categoria, os que
deslizam naturalmente para o patamar de «não praticantes», os que vivem na
periferia.
O Senhor chamou-nos
amigos e não servos, isto é, escravos da lei. Procuremos ser fiéis aos seus
ensinamentos. Amigo significa ter a coragem e a liberdade para repensar e repor
novas formas reconfiguração do espírito da lei, obedecendo à pedagogia divina,
que continuamente nos inspira a propor a mensagem do Mestre. Afastarmo-nos dos
ensinamentos é um passo para o confronto com a dramática bifurcação entre o
legalismo frio e estéril e o agnosticismo prático. Não, não nos afastemos do
espírito dos ensinamentos de Jesus.
Sem comentários:
Enviar um comentário