8 de outubro de 2008

O lugar da Bíblia na vida da Igreja




A mais de 40 anos de distância do Concílio Vaticano II (1962-1965), em que a Palavra de Deus passou a ter um incremento relevante, e a mesma passou a estar no centro da vida da Igreja, nomeadamente na Liturgia, muitas acções de formação (cursos bíblicos de curta e longa duração) foram desenvolvidas por muitos órgãos e movimentos eclesiais, com vista a ter uma Igreja não mais virada para si mesma, mas procurando dar força à Palavra de Deus, e envidando esforços por renovar a fé numa época em que a relação humana com Deus dá sinais de enfraquecimento.
Após tanto caminho percorrido, a Igreja constata que este tem sido muito lento, e ela mesma torna hoje presente o projecto do Concílio, considerando-o um projecto inacabado. E eis que vem momentaneamente à memória uma consideração básica proferida pelo então Pontífice João XXIII : « O que mais importa ao Concílio é que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz ».
Estas palavras continuam a ser nos nossos dias tão relevantes como então, ao ponto de o nosso Pontífice Bento XVI ter escolhido para o próximo Sínodo dos Bispos a realizar em Outubro de 2008 o tema “A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”.
Para este Sínodo encontra-se já em apreciação um documento de trabalho introdutório designado “Lineamenta”, que tem por finalidade apresentar o estado da questão sobre o importante tema da Palavra de Deus.
No nº 4 da Introdução deste pode-se ler: « São graves os fenómenos de ignorância e incerteza acerca da própria doutrina da Revelação e da Palavra de Deus; ainda é grande a distância que muitos cristãos têm em relação à Bíblia, e é constante o risco de um uso
não correcto da mesma; sem a verdade da Palavra torna-se insidioso o relativismo do pensamento e da vida. Tornou-se urgente a necessidade de conhecer integralmente a fé da Igreja sobre a Palavra de Deus, de alargar com métodos adequados o encontro com a Sagrada Escritura por parte de todos os cristãos e, ao mesmo tempo, acolher os novos caminhos que o Espírito hoje sugere, para que a Palavra de Deus, nas suas várias manifestações, seja conhecida, ouvida, amada, aprofundada e vivida na Igreja, e assim se torne Palavra de verdade e de amor para todos os homens». Mais adiante estabelece-se como objectivos do Sínodo: «renovar a escuta de Deus na Liturgia e na catequese, bem como acender a estima e o amor pela Sagrada Escritura, fazendo com que os fiéis tenham amplo acesso a ela» .
Nesta passagem encontram-se realçados dados muito importantes, a saber: ignorância, conhecimento, acolhimento.
É-nos mostrado um grande afastamento em relação à Bíblia, esse depósito sagrado da doutrina cristã, do qual resulta a ignorância.
Sabemos que toda a liturgia da Palavra, da qual constam a proclamação/escuta de várias passagens bíblicas do Antigo e do Novo Testamento, o salmo responsorial e o Evangelho de Jesus Cristo, se encontra estruturada naquele conjunto de livros. O elenco das leituras é organizado de tal forma que, passando pelos textos do Antigo Testamento, a assembleia possa ouvir as páginas mais importantes das Sagradas Escrituras num determinado espaço de tempo, possa pela escuta conhecer mais profundamente a fé que professa e a história da salvação, e venha a aderir a Cristo. Esta adesão a Cristo é feita por nós, fiéis, na veneração e contemplação de Cristo pelo Seu mistério e sacrifício eucarístico, que culmina na Sagrada Comunhão.
Cabe agora fazer este juízo: quando aderimos a algo, temos de conhecer o objecto de adesão. Então, se aderimos a Jesus, recebendo-O Sacramentado, temos de O conhecer em toda a Sua História, em todo o reinado de Deus. A Bíblia é por excelência o instrumento contemplativo de todo esse reinado. Ela é o maior tesouro que o cristão tem. Jesus mesmo nos ensina a compreender as características da Palavra ao dizer que ela é espírito e vida. É espírito, porque foi inspirada pelo Espírito de Deus. É vida, porque há caminho de vidas percorrido e novidade de vida sempre possível. Muitas vidas, muitas épocas, muita Vida. Nelas encontra-se o que encontramos nas nossas vidas - choro, sorriso, alegria, festa, dança, oração, luta, dor, derrota, vitória, recomeço. Muitas histórias, preces, cânticos, mitos, narrativas de libertação, profecias e experiências de vida diferentes. E o que se tornou intrínseco a todos esses tempos? Foi o mesmo Deus a indicar o caminho, a caminhar com o Povo, e a fazer-Se presente na história com Jesus. Foi Ele o alicerce da fé que os antepassados professavam, e quando na última Ceia Jesus diz: «Estarei convosco todos os dias até ao fim dos tempos», é o mesmo Jesus o Deus que caminha hoje connosco e nos sussurra: chega-te a mim, que eu me chegarei a ti.
Se o povo bíblico do Antigo Testamento se alimentou da fé, seguindo um Deus “abstracto”, nós, hoje, com a leitura e aprofundamento dos vários livros bíblicos, podemos não só buscar lenitivo para os nossos problemas, obtendo a força de que necessitamos através da leitura das experiências de fé narradas nas vidas de tantos homens e mulheres, como as regras de vida pelas quais nos devemos pautar. Por conseguinte a Bíblia é vida para todos nós. Não está congelada no passado. Logo, devemos acolhê-la.

Não podemos esquecer a interpretação da Palavra de Deus que está presente na mesa da Palavra todas as vezes que a Igreja se reúne em assembleia para celebrar os divinos mistérios. A este respeito sabemos que aos fiéis cabe ouvir a Palavra e meditá-la. Sabemos também que cabe ao leitor, no seu nobre ministério, dar-lhe vida. Em outras palavras, a Palavra proclamada, pelo que acima ficou escrito, não veicula apenas uma informação passada, mas deve fazer acontecer algo novo na nossa vida no momento em que é ouvida, impondo a necessidade de transformação.
E emerge a pergunta: Que deve o leitor fazer? E com que se deve preocupar?
Seria bom que antes de se fazer ouvir, se preocupasse primeiro consigo próprio, tornando-se ele o primeiro estudioso dos livros bíblicos para que da proclamação da palavra transborde força libertadora. Seria bom que participasse em cursos bíblicos para aprofundar o seu conhecimento, se deixar iluminar pela força do Espírito e se fortalecer na fé.
A meditação das Escrituras ensina o leitor a manter-se em comunhão com Cristo. Caso não o faça, ele não irá além de um biblô que escuta a sua própria voz, e cujo espírito emudeceu; e em vez de ser uma brasa ardente pelo contacto com a fogueira da Palavra, passa a substância residual que se lança fora, tornando-se a sua voz inaudível aos sentidos de quem o escuta.

M. Estela Rodrigues, membro da Comissão Arquidiocesana de Pastoral Litúrgica

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