26 de outubro de 2009

SARAMAGO E A BÍBLIA



Afirmou José Saramago que a Bíblia é «um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana» e reflecte uma imagem de «um deus cruel, invejoso e insuportável». Disse também que, como os católicos não lêem a Bíblia, não se sentirão muito incomodados com este tipo de afirmações.

Não sou especialista em exegese da Bíblia e certamente deveria conhecê-la melhor. Mas o que dela conheço é suficiente para concluir que é Saramago quem não a conhece, ou não a interpretou correctamente, porventura por ter desligado algumas das suas passagens da sua mensagem global.

Não compreendo como é que Saramago não viu na Bíblia a imagem de um Deus que é Amor. Em continuidade com o Antigo Testamento, que constantemente nos revela um Deus «clemente e compassivo», «lento para a ira e rico em misericórdia», o Novo Testamento revela em toda a sua plenitude o amor de Deus. Um Deus que, por amor, se incarna, partilha a condição humana e se identifica com o sofrimento humano até ao extremo do abandono e da morte na cruz, para que fosse restabelecida a Sua comunhão com a humanidade. Um Deus à imagem do bom pastor que dá a vida pelas suas ovelhas, ou que deixa todas as outras para salvar aquela que se perdeu. Um Deus à imagem do pai do filho pródigo, que perdoa e acolhe.

Na Bíblia encontramos, como em nenhum outro livro, a exaltação da dignidade da pessoa humana, criada «à imagem e semelhança de Deus». «Quando contemplo o céu, obra dos teus dedos, a Lua e as estrelas que fixastes…O que é o homem, para dele te lembrares…Tu o fizeste pouco menos do que um deus, e o coroaste de glória e esplendor» (Sl. 6).

Quem seja sensível à justiça para com os pobres e oprimidos, em quantas passagens do Antigo e do Novo Testamento não encontrará inspiração e alento?

Onde encontrar mais sólido fundamento de harmonia social do que no amor evangélico, que perdoa «setenta vezes sete vezes» e se estende até aos inimigos, a quem se retribui o «mal com o bem»?

Por tudo isto, também é fácil concluir que não foi a fidelidade à mensagem bíblica que conduziu às guerras e conflitos com pretextos religiosos. A razão dessas guerras e conflitos está antes no orgulho e paixões humanas (também retratadas na figura de Caim), que tendem a instrumentalizar a religião, assim a pervertendo. Na pureza dos seus princípios, livres de instrumentalizações políticas ou ideológicas, as religiões são factor de concórdia e da paz, como o testemunham os encontros de Assis.

E não são só os crentes que reconhecem o tesouro da Bíblia e que ele representa também para o nosso património cultural, fonte de inspiração para filósofos e artistas ao longo de séculos. Por exemplo, o filósofo italiano Massimo Cacciari, não crente, tem defendido um mais aprofundado estudo da Bíblia em todos os graus de ensino laico, incluindo o universitário.

Oxalá desta tão triste e anacrónica polémica se possa colher, ao menos, algo de positivo: um pouco mais de interesse pela Bíblia.

Pedro Vaz Patto

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